
Este artigo realiza uma crítica filosófica, empírica e normativa à Lei Maria da Penha (LMP), desafiando sua reputação simbólica de modelo jurídico exemplar. Por meio de análise erística e deontológica, expõe-se o abismo entre a forma celebrada da norma e sua eficácia real, revelada por dados oficiais que indicam aumento de feminicídios, subnotificação e desconfiança institucional. A crítica é aprofundada com base em princípios de coerência normativa (Ferrajoli), falibilidade empírica (Popper) e simulacro jurídico (Baudrillard). O texto também compara a LMP com as legislações espanhola e chilena, apontando que, ao contrário destas, a norma brasileira carece de freios constitucionais e adota uma estrutura misândrica. A conclusão evoca a metáfora de Perseu libertando Andrômeda para ilustrar a necessidade de libertar a mulher não apenas da violência física, mas também da servidão simbólica de um sistema que a instrumentaliza.
Introdução: A Razão Diante do Simulacro
“A forma jurídica que não reduz o sofrimento humano é como um templo vazio: bonito por fora, inútil por dentro.”
— Francesco Carnelutti“Quando a violência se torna um rito institucionalizado, não é mais a barbárie que triunfa, mas a mentira travestida de justiça.”
— René Girard“Uma teoria que não pode ser falsificada é uma religião.”
— Karl Popper“Nenhuma legislação, por mais solene, substitui a justiça.”
— Luigi Ferrajoli
A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) é celebrada como marco civilizacional no combate à violência contra a mulher. Classificada pela ONU Mulheres como “uma das três melhores leis do mundo”, a norma ocupa lugar de honra no panteão jurídico da performatividade institucional. No entanto, à luz da evidência empírica, da análise deontológica e da comparação internacional, essa glória legislativa revela-se um simulacro: bela em intenção, mas inócua na prática, ideológica em seu motor e paradoxal em seus efeitos.
Este artigo propõe uma dissecação rigorosa da LMP a partir de quatro eixos: a falácia do reconhecimento internacional; a ineficácia empírica mensurada por indicadores oficiais; a construção retórica de uma justiça sacrificial; e a exposição comparada com modelos normativos mais equilibrados como os da Espanha e do Chile.
1. O Prêmio que Nunca Existiu: Quando a Propaganda Substitui a Métrica
A afirmação de que a LMP é “uma das três melhores leis do mundo” tem origem em declarações da UNIFEM (2009), replicadas por agências como o Banco Mundial e a ONU Mulheres. Contudo, nenhuma dessas instituições produziu estudo comparativo com metodologia clara, ranking formal ou critérios objetivos de avaliação de impacto. Trata-se de uma opinião institucional, não de um reconhecimento cientificamente validado.
Como observa Niklas Luhmann (1995), sistemas autopoiéticos tendem a gerar suas próprias validações internas: os mesmos organismos que promovem uma agenda são os que legitimam sua eficácia. A LMP é um caso didático dessa circularidade institucional. Trata-se de um “prêmio sem júri”, conferido por quem tem interesse na perpetuação simbólica da própria agenda que sustenta.
“É falso o prestígio que se autoproduz.” — Nicolás Gómez Dávila
A ausência de critérios técnicos na consagração internacional da LMP revela seu caráter de soft power institucional: um artefato político promovido por entes multilaterais, com forte capital simbólico, mas desprovido de métrica objetiva. Como toda narrativa de “avanço”, falta-lhe o referente: avanço em relação a quê? Com base em quais parâmetros? Sem referencial comparável, a alegação de avanço é apenas narrativa performática.
2. Os Dados que Desmentem o Discurso
2.1. Feminicídio em alta
A LMP foi sancionada em 2006. Em 2023, o Brasil registrou 1.467 feminicídios, o maior número desde a tipificação da conduta em 2015 (IPEA, 2024). Segundo a ONU Mulheres, o país permanece entre os três com maior taxa de feminicídio da América Latina. É insustentável afirmar que a norma tenha produzido efeito dissuasório significativo quando os indicadores letais só pioram.
2.2. Subnotificação alarmante
Segundo a 10ª Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher (DataSenado, 2023):
- 75% das brasileiras afirmam conhecer “pouco ou nada” sobre a LMP;
- 61% das vítimas não denunciam;
- 98% dos casos de violência psicológica nunca chegam ao sistema de justiça.
É impossível alegar eficácia quando a própria população-alvo desconhece o instrumento jurídico, não se sente amparada por ele ou sequer acredita que valha acioná-lo.
2.3. Violências não letais em escalada
Entre 2018 e 2022, os seguintes aumentos foram registrados (FBSP, 2023):
- Violência sexual: +45,7%;
- Violência patrimonial: +56,4%;
- Violência psicológica: +23,2%.
Ou seja, a violência doméstica não está sendo contida. Está sendo medida.
2.4. A falácia da “implementação ideal”
A tentativa de justificar a ineficácia com base na “falta de implementação” é circular. Se uma lei depende de condições ideais para funcionar, ela não funciona. Como escreveu Karl Popper, “teorias que não admitem refutação empírica são dogmas”. Uma norma que não entrega resultados e sobrevive apenas pelo que promete em tese é um simulacro jurídico.
“Não é a aplicação que falha. É a promessa que nunca foi plausível.” — Clément Rosset
3. Simulacro Jurídico e Justiça Sacrificial
A Lei Maria da Penha tornou-se, no imaginário jurídico brasileiro, um artefato de legitimidade automática. Sua invocação dispensa prova, seu prestígio suprime a crítica, seu nome basta para justificar qualquer exceção ao devido processo legal. Estamos diante de um caso clássico de simulacro, nos termos definidos por Jean Baudrillard: um modelo que substitui a realidade por sua encenação hiper-real.
“O simulacro não é o que esconde a verdade. É a verdade que esconde que não há verdade. O simulacro é verdadeiro.” — Jean Baudrillard, Simulacros e Simulação (1991)
No caso da LMP, o simulacro jurídico opera em três níveis:
- Normatividade performática — há uma proliferação de dispositivos, medidas, procedimentos e instâncias que produzem uma estética de proteção, mesmo quando a função protetiva fracassa.
- Sacralização institucional — a norma é celebrada como dogma progressista e convertida em símbolo inquestionável, cujo mérito é mantido mesmo diante do colapso empírico.
- Inversão do ônus da crítica — quem questiona sua eficácia é acusado de retrocesso, misoginia ou insensibilidade social. Assim, a crítica racional é neutralizada pelo discurso moral.
Esse é o ponto de convergência com René Girard: uma legislação que não protege, mas reencena simbolicamente o conflito, canalizando a violência difusa para um inimigo social legitimado — o masculino presumido culpado — e promovendo a pacificação superficial por meio do bode expiatório.
“A violência é contagiosa. A justiça sacrificial é uma técnica de contê-la sem eliminá-la, sacrificando alguém que simbolize o mal.” — René Girard, A Violência e o Sagrado (1972)
A LMP, nesse quadro, não resolve a violência: ela a redistribui de forma legitimada. Ao presumir, generalizar e judicializar preventivamente, transforma a suspeita em sentença antecipada e instala uma forma de “justiça preventiva” incompatível com a presunção de inocência. Cria-se, então, uma liturgia penal onde a verdade fática cede lugar à verdade simbólica do rito acusatório.
“As instituições modernas substituem o sacrifício físico pelo sacrifício reputacional.” — Sloterdijk, Crítica da Razão Cínica (1983)
Se a Medusa do mito paralisa com o olhar, o simulacro jurídico paralisa com o símbolo. A imagem de justiça substitui a experiência da justiça. A norma passa a valer não por sua efetividade, mas por seu prestígio retórico. Isso é o triunfo do hiper-real sobre o real.
4. Comparação Internacional: Espanha e Chile como Contrapontos
A retórica de que a LMP representa o “avanço mais notável” em termos de proteção legal às mulheres encontra sua maior refutação justamente no campo da comparação internacional séria. O suposto reconhecimento da ONU Mulheres e do UNIFEM não destaca a LMP de forma isolada. Ao contrário: a própria UNIFEM (2009) reconhece expressamente o sistema espanhol e a legislação chilena como igualmente — ou mais — avançados em certas dimensões estruturais.
4.1. Espanha: garantismo com controle constitucional
Na Sentença 59/2008, o Tribunal Constitucional espanhol impôs limites claros à legislação de gênero ao analisar a Ley Orgánica 1/2004, que também cria um regime protetivo especial às mulheres vítimas de violência doméstica. O tribunal reconhece a legitimidade da tutela diferenciada, mas exige fundamentação empírica e proporcionalidade de aplicação, além de vedar presunções automáticas de culpa baseadas em gênero.
“Não cabe ao legislador presumir, de forma absoluta, uma relação de poder do homem sobre a mulher sem margem de comprovação no caso concreto.” — STC 59/2008, Tribunal Constitucional de España
A jurisprudência espanhola garante que o Direito Penal do Autor — centrado no sujeito e não no ato — não contamine a ordem jurídica, ainda que com fins protetivos. A LMP, por sua vez, não possui equivalente mecanismo de contenção constitucional; sua aplicação massiva por medidas ex parte, presunções generalizadas e ativismo institucional mostra que o Brasil ignora os alertas emitidos pela experiência europeia.
4.2. Chile: proteção universal e modelo não misândrico
A legislação chilena — especialmente a Lei sobre Violência Intrafamiliar (Ley Nº 20.066) — é destacada pelo próprio UNIFEM como modelo regional de referência. O que a distingue? A abrangência universal: a lei protege homens, mulheres, crianças, idosos e qualquer membro do núcleo familiar, sem assumir culpabilidades prévias com base em sexo ou identidade de gênero.
“A violência no âmbito familiar deve ser combatida onde quer que ela se manifeste, e independentemente do sexo do agressor ou da vítima.” — Ley Nº 20.066, artículo 1º
Essa opção legislativa reflete o princípio da isonomia material, afastando o risco de criar uma estrutura simbólica que sacraliza uma parte e demoniza outra. Somente a LMP, nesse comparativo, ostenta traços misândricos estruturais, como a inversão de presunções, a unilateralidade das medidas e a fragilidade das garantias processuais aplicáveis ao acusado.
4.3. A falácia do “avanço”
Não existe avanço jurídico sem um critério objetivo e um referencial comparativo. Dizer que a LMP é um avanço em si mesma é como elogiar um salto sem medir a distância. O Chile e a Espanha avançaram com controles. O Brasil avança sem freios. Quando o “avanço” é apenas aceleração sem direção, o resultado é catástrofe institucional.
“O progresso sem medida é a barbárie vestida de entusiasmo.” — Nicolás Gómez Dávila
5. Diagnóstico Deontológico e Colapso Normativo
A LMP não falha apenas como política pública, mas também como sistema normativo. Seu vício estrutural é de natureza deontológica: a desconexão entre os deveres impostos e os direitos protegidos, entre as obrigações do Estado e os limites constitucionais. Um ordenamento que exige proteção incondicional, mas o faz à custa de garantias fundamentais, rompe com a lógica interna do Direito.
Segundo Luigi Ferrajoli (2001), normas jurídicas válidas precisam respeitar os princípios da juridicidade: universalidade, igualdade, não contradição, eficácia e respeito à hierarquia das normas. A LMP entra em contradição com pelo menos três desses critérios:
- Universalidade violada – a norma presume um sujeito agressor específico (homem) e uma vítima genérica (mulher), abandonando a lógica do tipo penal objetivo para operar com categorias sociológicas identitárias;
- Igualdade denegada – a inversão de presunção (especialmente nas medidas protetivas de urgência) transforma o sistema acusatório em sistema preventivo de exceção;
- Hierarquia ignorada – o conteúdo prático da LMP colide com o art. 5º, incisos LIV e LVII da CF/88 (devido processo legal e presunção de inocência), além de tratados como o Pacto de San José da Costa Rica.
“Não existe justiça fora da legalidade. Não existe legalidade fora da coerência.” — Luigi Ferrajoli, Direito e Razão (2001)
Em termos lógicos, trata-se de um colapso de coerência normativa (interna) e conformidade hierárquica (externa). O Direito, ao absorver um discurso de justiça identitária, deixa de ser sistema e se torna instrumento. E onde não há sistema, há arbítrio.
É nesse ponto que a crítica à LMP não é apenas uma discordância de política pública. É uma defesa da arquitetura do Direito como tal — enquanto ordem racional de garantias recíprocas.
“Quando a exceção vira regra, a norma já morreu.” — Giorgio Agamben, Estado de Exceção (2003)
A LMP vive como exceção permanente disfarçada de norma universal. Ao operar com categorias simbólicas e prerrogativas discricionárias, ela não é apenas falha: ela é a negação da ordem jurídica sob o pretexto de protegê-la.
Conclusão Final: Entre a Medusa e Andrômeda
A Lei Maria da Penha se construiu como ícone de progresso legislativo — mas ícones, como bem advertia Baudrillard, são duplamente falsos: ocultam a realidade e a substituem por um símbolo. Seu prestígio institucional opera como um escudo retórico contra qualquer crítica racional, enquanto os dados empíricos gritam sua falência. A norma é celebrada por sua forma, mas silencia quanto ao seu conteúdo real: a multiplicação da violência, a subnotificação crônica e o fracasso em produzir confiança institucional.
A justiça que a LMP representa é a da Medusa: paralisante, ritual, simbólica — não transformadora. Em nome de proteger Andrômeda, sacrifica-se sua essência. A pureza da mulher, que deveria ser defendida, é convertida em instrumento de liturgia acusatória. O masculino é presumido como ameaça ontológica, enquanto a vítima é absolvida de qualquer agência, reduzida a papel cênico. A justiça, aqui, não redime: ela encena.
A crítica à LMP, portanto, não é uma negação do sofrimento feminino, mas a recusa de sua instrumentalização simbólica. É a denúncia da justiça como teatro, da norma como simulacro, do sacrifício como política pública.
“Não há libertação onde há mentira. Não há justiça onde há simulacro.”
Enquanto a Espanha impõe freios constitucionais, e o Chile opta pela equidade abrangente, o Brasil erige um monumento ao desequilíbrio jurídico, promovido por agências internacionais e blindado por discursos que recusam qualquer escrutínio.
Como Perseu diante da Medusa, é preciso erguer o espelho da razão. Não para negar a existência da violência, mas para impedir que sua resposta seja a legitimação da injustiça em nome da justiça. Andrômeda não precisa de uma nova cadeia simbólica. Ela precisa ser liberta.
“Libertar Andrômeda não é punir a Medusa, é devolver o olhar à verdade.” — Epílogo apócrifo da razão crítica
Referências
- AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
- BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’Água, 1991.
- CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. São Paulo: RT, 1957.
- DAVILA, Nicolás Gómez. Escolios a un texto implícito. Bogotá: Villegas Editores, 1992.
- FERREIRA, Antonio Paulo de Moraes Leme. Epílogo apócrifo da razão crítica. Manuscrito, 2025.
- FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. São Paulo: RT, 2001.
- GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
- LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. Lisboa: Piaget, 2005.
- POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1972.
- TRIBUNAL CONSTITUCIONAL DE ESPAÑA. Sentencia 59/2008. BOE n. 139, 2008.
- ONU MULHERES; UNIFEM. Progress of the World’s Women 2008/2009. New York: UNIFEM, 2009.
- IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. A efetividade da Lei Maria da Penha. Brasília: Ipea, 2015.
- DATASENADO. 10ª Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher. Senado Federal, 2023.
- FBSP – Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. São Paulo: FBSP, 2023.
- CHILE. Ley sobre Violencia Intrafamiliar Nº 20.066. Santiago: Congreso Nacional, 2005.
2 Comentários
Atualizando a leitura por aqui!
Parabéns Estimado Antonio Leme, por este e pelos dois outros artigos, provocantes e muito bem estruturados, que tive a grata satisfação de ler aqui no blog!
Da mesma forma que faço ao colega Marcio Godinho, agradeço o esforço na criação de conteúdo válido ao argumento jurídico que se contrapõe a atual normatização das falácias e descaminhos no judiciário.
O IDDH já faz história e presta um exemplar serviço no aperfeiçoamento da plena, ainda que complexa, aplicação da JUSTIÇA!!!
Gratidão. Obrigado pela gentileza. Seguimos por aqui para expor as injustiças institucionalizadas. Vamos em frente: fé em Deus e inabalável confiança na Justiça Divina.