“A prudência é a primeira de todas as virtudes, sem a qual nenhuma das outras pode existir.”
— Edmund Burke [1]
“It is better that ten guilty persons escape than that one innocent suffer.”
— William Blackstone
Introdução: Conservadorismo, Prudência e o Risco do Moralismo Legislativo
O conservadorismo clássico, desde as reflexões de Edmund Burke em Reflexões sobre a Revolução em França, até a sistematização norte-americana de Russell Kirk em The Conservative Mind, sempre se caracterizou menos como uma ideologia abstrata e mais como uma disposição prudencial. Trata-se de uma tradição que valoriza a continuidade histórica, a moderação nas reformas e a desconfiança diante de soluções radicais para problemas sociais complexos [2].
No Brasil contemporâneo, contudo, a ascensão de lideranças políticas autodenominadas conservadoras tem levantado dúvidas quanto à fidelidade de seus projetos à matriz original. Entre essas lideranças destaca-se a figura da senadora Damares Alves (Republicanos-DF), ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (2019–2022). Damares construiu sua imagem pública como defensora da família, porta-voz de valores cristãos e crítica aguerrida do feminismo.
O presente ensaio se propõe a analisar criticamente a coerência entre discurso e prática na atuação legislativa da senadora, a partir de três eixos principais:
- Projetos de lei de sua autoria que introduzem automatismos punitivos e ampliam o alcance do Estado penal;
- Sua posição pública sobre a Lei da Alienação Parental (Lei nº 12.318/2010), cuja revogação completa chegou a ser defendida por setores com os quais Damares se aliou;
- A narrativa conservadora em contraste com medidas que, de fato, evocam um ethos revolucionário, de desmonte abrupto em vez de reforma prudencial.
O argumento central a sustentar é que há em sua atuação uma antinomia conservadora: embora se apresente como guardiã da família e da moral tradicional, Damares propõe medidas que ampliam o estatismo punitivo, corroem garantias processuais universais e criam vácuos jurídicos que fragilizam a própria instituição familiar.
Além disso, é preciso reconhecer limites de escopo: dois projetos de lei e uma posição pública polêmica sobre alienação parental não permitem concluir, de maneira categórica, que Damares “cerceou os direitos humanos dos homens”. O que se pode afirmar, com base razoável, é que suas propostas apontam uma tendência perigosa de seletividade jurídica e expansão do punitivismo estatal, incompatível com a prudência conservadora.

A cena bíblica simboliza a prudência e discernimento do juiz, em contraste com o automatismo punitivo, funcionando como metáfora visual para o argumento central do artigo.
O Conservadorismo Clássico: Virtudes, Tensões e Aplicações
Antes de avaliar a atuação de Damares, convém esclarecer o que se entende aqui por conservadorismo. No debate político contemporâneo brasileiro, o termo é frequentemente usado de maneira imprecisa, confundindo tradições distintas como conservadorismo clássico, libertarianismo e até moralismo religioso. É necessário recuperar alguns fundamentos do pensamento conservador para termos um critério de análise:
Edmund Burke: Prudência e Reforma Incremental
Para Burke, a política não é terreno de abstrações, mas de experiência acumulada. Reformas são aceitáveis, mas devem ser incrementais, nunca revolucionárias [1]. Ele via na prudência a primeira das virtudes políticas: sem ela, a coragem se torna temeridade, a justiça se torna rigidez, e a temperança se converte em omissão [3]. Governantes devem avaliar cuidadosamente as consequências de longo prazo de qualquer medida pública, em vez de buscarem vantagens temporárias ou aplauso imediato [4]. A aplicação desse princípio a contextos legislativos é clara: leis que introduzem automatismos punitivos, ignorando a necessidade de ponderação judicial, ferem o espírito burkeano de prudência. Da mesma forma, revogar uma lei inteira por conta de distorções práticas equivale a substituir reforma por destruição — algo que Burke classificaria como jacobino, isto é, próprio de revolucionários inebriados por abstrações [1].
Russell Kirk: Princípios Permanentes
Kirk sistematizou o pensamento conservador em dez princípios, entre os quais se destacam:
- Ordem moral duradoura: a sociedade precisa de uma base moral transcendente; contudo, essa ordem não se alcança por decretos súbitos [2].
- Princípio da variedade: leis que criam castas jurídicas (por exemplo, protegendo seletivamente apenas mulheres) rompem a ordem natural da diversidade social [2].
- Princípio da prudência: governar sem considerar consequências imprevistas é agir como revolucionário; na política, prudência é “a principal das virtudes” do estadista [2].
- Governo limitado: o Estado deve ser contido em suas pretensões, inclusive punitivas, pois a concentração de poder invariavelmente ameaça a liberdade [5].
Em suma, para Kirk o conservador preza instituições que evoluem organicamente, defende a pluralidade de ordens sociais e desconfia de esquemas igualitários forçados ou do expansionismo estatal movido por entusiasmos do momento [6].
Michael Oakeshott: Política de Ceticismo vs. Política de Fé
Oakeshott introduziu a distinção entre dois estilos de condução política:
- Política de fé: busca moldar a sociedade inteira a partir de uma visão moral única, geralmente via expansão do poder estatal. É a “política da perfeição”, que enxerga o governo como instrumento para atingir uma utopia terrena, dirigindo ativamente a vida dos cidadãos em todos os âmbitos [7]. Nesse modo, acredita-se não haver limitações inerentes ao progresso humano, e o Estado se torna o “grande inspirador e diretor” da melhoria social, guiando a humanidade rumo à perfeição [7].
- Política de ceticismo: aceita a imperfeição humana e prefere frear o poder, em vez de entregá-lo a uma cruzada moral. O governo aqui é visto mais como um árbitro que garante regras mínimas e o respeito ao estado de Direito, deixando as pessoas livres para buscarem seus próprios propósitos [8]. O cético desconfia de empreitadas que buscam a perfeição mundana e entende que governar deve ser primariamente uma atividade judiciosa (judicial, no sentido de aplicar imparcialmente a lei), não uma engenharia social [7].
Projetos que preveem penas automáticas, sem espaço para avaliação individual, são exemplos típicos da política de fé: confiam em fórmulas legais rígidas para “purificar” a sociedade, expandindo o alcance do Estado em nome de um objetivo moral.
Tensões históricas no conservadorismo
É necessário reconhecer que, ao longo da história, conservadores nem sempre foram garantistas no sentido jurídico atual. Em muitos contextos, apoiaram punições severas contra crimes sexuais, imoralidade pública e desordens sociais. A diferença, porém, estava na lógica subjacente: esse apoio fundamentava-se na manutenção da ordem e proteção da comunidade – não em cruzadas moralistas com efeito meramente simbólico e impacto desproporcional sobre garantias universais. Em outras palavras, um conservador tradicional pode defender penas duras, mas dificilmente aceitaria, por exemplo, perda automática de cargo público sem decisão judicial fundamentada, ou a revogação total de uma lei de proteção familiar sem plano alternativo para salvaguardar as crianças. Prudência implica calibrar a resposta estatal à luz das circunstâncias concretas, sem destruir salvaguardas que a experiência legou.
Análise Factual dos Projetos Legislativos de Damares Alves
Passamos agora ao exame de casos concretos da atuação legislativa de Damares Alves, com foco em dois projetos de lei de sua autoria e em uma lei aprovada com seu apoio público. O objetivo é confrontar o conteúdo dessas iniciativas com os princípios conservadores delineados acima, testando sua coerência.
PL 499/2023 – Perda Automática de Cargo Público
O Projeto de Lei do Senado nº 499/2023, de autoria de Damares Alves, propõe alterar o artigo 92 do Código Penal para estabelecer a perda automática do cargo, função pública ou mandato eletivo de condenados por crimes sexuais contra crianças, adolescentes, pessoas com deficiência ou mulheres [9]. Além disso, veda que esses condenados venham a assumir cargos ou funções públicas por até cinco anos após o cumprimento da pena [9]. À primeira vista, a proposta pode parecer intuitivamente justa: ninguém deseja que um agressor sexual permaneça em funções de confiança do Estado. No entanto, um exame mais atento revela problemas sérios sob a ótica conservadora e mesmo constitucional:
- Automatismo cego: Atualmente, a perda de cargo público como efeito de condenação não é automática; ela precisa ser declarada motivadamente na sentença penal [10]. O projeto de Damares transforma o que deveria ser uma decisão judicial fundamentada em consequência obrigatória e automática da condenação. O juiz perderia sua função de ponderar as peculiaridades de cada caso, abrindo mão da prudência individualizada em favor de uma solução genérica de legislador [11].
- Risco à presunção de inocência: Dependendo da interpretação, a perda do cargo poderia ser executada já após condenação em segunda instância (como chegou a ocorrer no país entre 2016 e 2019) ou mesmo após decisão de primeiro grau, visto que recursos podem demorar anos [12]. Isso conflita com o princípio constitucional de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado” (art. 5º, LVII, CF/88) [13]. A experiência recente do STF, que em 2016 permitiu a execução antecipada da pena e depois reverteu essa posição em 2019, demonstra o perigo de se relativizar garantias fundamentais em nome do punitivismo [14].
- Assimetria de proteção por gênero: O texto do PL menciona explicitamente a proteção às mulheres, mas não aos homens adultos que eventualmente sejam vítimas de crimes sexuais. Ou seja, se um homem for vítima de estupro ou assédio sexual, o mecanismo de perda automática não se aplicaria, já que a redação não o contempla. Essa seletividade fere a igualdade formal assegurada pela Constituição, criando uma casta especial de vítimas (do sexo feminino) com proteção jurídica superior [15]. Um conservador, que valoriza a ordem natural e cética em relação a engenharias sociais, veria com preocupação uma lei que hierarquiza vítimas em vez de punir todos os agressores.
- Efeitos simbólicos vs. reais: Ao criar uma pena acessória automática e de grande apelo midiático, o projeto pode produzir efeito simbólico de “rigor” contra criminosos sexuais. No entanto, ele não resolve os gargalos de investigação e prova que são os verdadeiros entraves à punição efetiva desses crimes. Em vez de investir em melhor apuração, prevenção e celeridade processual, opta-se por uma solução de vitrine, cujo impacto preventivo real é duvidoso.
Do ponto de vista conservador, este projeto falha porque substitui a prudência judicial pelo automatismo legislativo. Burke advertiria que tal solução simplista não reforma – mas sim revoluciona – a ordem jurídica, arriscando produzir mais injustiças do que soluções. Conforme ressaltado por um relator no Senado, a perda de cargo por crimes já é possível na lei atual, mas precisa encaixar-se nas hipóteses do Código Penal; o PL 499/2023 surge da percepção de que algumas condenações por abuso sexual acabavam não gerando a perda de função pela falta de previsão explícita, o que forçaria este remédio genérico [9]. Entretanto, ao tapar essa “brecha” de forma inflexível, corre-se o risco de punir casos muito díspares com a mesma severidade cega, minando a justiça como equilibrada aplicação de princípios gerais aos casos concretos.
PL 8/2024 – Reabilitação Penal Após Dez Anos
O Projeto de Lei do Senado nº 8/2024, também de autoria de Damares, propõe alterar o artigo 94 do Código Penal, ampliando de dois para dez anos o prazo mínimo para requerer reabilitação penal em casos de crimes contra a dignidade sexual [16]. Em outras palavras, um condenado por crime sexual, mesmo após cumprir integralmente sua pena e satisfazer os requisitos legais, teria de esperar uma década (e manter-se sem novas infrações) para então obter o favor judicial de ter seus antecedentes “limpos”. A reabilitação penal é o instituto que permite ao condenado, após cumprir a pena e um período de prova, reaver plenamente direitos e sigilo sobre seus antecedentes, desde que demonstre bom comportamento. É, portanto, parte da lógica de reinserção social do sistema penal brasileiro [17].
Problemas da proposta:
- Violação da proporcionalidade: A lei vigente já prevê um prazo de dois anos após o cumprimento da pena para pleitear a reabilitação [10]. Aumentar esse período em cinco vezes, sem apresentação de dados empíricos que justifiquem tal extensão, soa desarrazoado. A justificativa oferecida por Damares é que, pela natureza hedionda do crime sexual, um prazo curto “corrobora para a manutenção de altos índices de reincidência, já que o estuprador sai com ficha limpa” [16]. No entanto, não são apresentados estudos concretos ligando a reabilitação precoce com reincidência. Pesquisas internacionais indicam que a taxa de falsas acusações ou mesmo de reincidência em crimes sexuais não difere drasticamente de outros delitos quando se controla variáveis, e que o risco maior reside em falhas de tratamento e monitoramento, não no certificado de bons antecedentes em si [18].
- Estigmatização permanente: Na prática, o condenado cumpre sua pena, mas continua marcado como pária social por mais de uma década. Sem reabilitação, seus antecedentes criminais seguem acessíveis, prejudicando acesso a empregos e retomada da vida civil. Em vez de sinalizar a possibilidade de redenção pelo cumprimento do dever imposto (a pena), o Estado prolonga a pena indiretamente por um longo período. Trata-se quase de uma pena civil perpétua.
- Função da pena deturpada: A execução penal, segundo a Lei de Execução Penal (LEP), tem por finalidade “efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado” (art. 1º da LEP). A reabilitação é parte desse mecanismo integrador. Ao tornar a reabilitação uma promessa remota, o projeto de Damares reforça o viés exclusivamente retributivo e de banimento do condenado, em detrimento da finalidade ressocializadora prevista em lei.
- Contradição com o ethos conservador: O conservadorismo clássico valoriza a possibilidade de redenção e de melhoria moral do indivíduo, especialmente em sociedades de matriz cristã, onde o perdão e a recuperação do pecador arrependido são valores centrais. Transformar a reabilitação numa miragem distante aproxima-se mais de um sistema de castas (onde certos indivíduos ficam marcados ad eternum) do que de justiça prudencial. Em vez de reforçar a responsabilidade individual e comunitária na reinserção, delega-se ao Estado um prolongamento do ostracismo.
A crítica conservadora, portanto, não nega a gravidade dos crimes sexuais nem propõe leniência. O que se afirma é que a solução não está em perpetuar estigmas pós-cumprimento de pena, mas em melhorar as fases anteriores: investigações mais eficazes, processos mais céleres (porém garantindo defesa) e condenações sólidas. A prudência recomenda atacar a raiz do problema (impunidade pela má qualidade da persecução penal) ao invés de ampliar penas acessórias de efeito duvidoso. Afinal, se um criminoso sexual é realmente perigoso ao fim da pena, a resposta adequada seria outra (medidas de segurança, monitoração eletrônica temporária, tratamento compulsório etc.), e não simplesmente mantê-lo “marcado” no papel por mais tempo.
Lei 15.035/2024 – Cadastro Nacional de Predadores Sexuais (Apoio Público, não Autoria)
Muitos comentaristas atribuíram a Damares a autoria da Lei nº 15.035/2024, que criou o Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais. O projeto, na realidade, foi de iniciativa da senadora Margareth Buzetti (PSD-MT) [19]. A lei, sancionada em novembro de 2024, estabelece um sistema de registro nacional de condenados por crimes sexuais, permitindo a consulta pública do nome e CPF de réus condenados já em primeira instância por crimes sexuais [19]. O dispositivo mais polêmico previa a publicidade irrestrita do nome e CPF dos condenados, por dez anos após o cumprimento da pena. Esse ponto, contudo, foi vetado pelo presidente Lula, por considerá-lo inconstitucional, já que violaria princípios como intimidade, vida privada, honra e dificultaria a reintegração social do egresso [20]. Importante notar: a lei permite a divulgação já após condenação em primeiro grau, garantindo retirada dos dados se o réu for absolvido em segunda instância [19] – ou seja, mesmo antes do trânsito em julgado o indivíduo pode ter seu nome exposto, o que por si só já gera controvérsia jurídica.
Embora Damares não tenha sido autora da lei, ela apoiou publicamente esse tipo de proposta, alinhando-se a uma agenda punitivista e de exposição pública dos criminosos sexuais. Após a sanção com veto, Damares protestou contra o veto presidencial e defendeu que os dados dos condenados permaneçam públicos mesmo após cumprirem a pena, argumentando ser necessário à proteção de crianças saber onde estão os “predadores” e impedí-los de assumir funções como motoristas de van escolar ou babás [21]. Ou seja, Damares posicionou-se a favor da versão mais rigorosa do cadastro, aquela vedada pelo Executivo por afrontar direitos fundamentais.
Do ponto de vista conservador:
- Um cadastro de criminosos sexuais de acesso sigiloso, restrito a autoridades policiais e judiciais, poderia ter finalidade legítima dentro de um Estado de Direito (monitorar reincidentes, auxiliar investigações etc.). Seria análogo a cadastros existentes de outros criminosos perigosos, desde que respeitado o devido processo.
- Entretanto, a publicidade irrestrita equivale a uma forma de morte civil. O indivíduo, mesmo após pagar sua dívida legal, continua exposto à execração pública, dificultando qualquer chance de reintegração. Essa lógica contraria a prudência burkeana, que veria nela um ato de temeridade revolucionária – punição pública perpétua – em vez de uma medida de ordem e justiça. Não por acaso, a mensagem de veto presidencial apontou violação à dignidade da pessoa humana e aos direitos de personalidade do condenado [20].
Em resumo, Damares mostrou-se alinhada a medidas de intensificação punitiva e simbólica (como “listas públicas de pedófilos”), reforçando um ethos de penalidade exemplar em detrimento de soluções estruturais. Cabe esclarecer que, do ponto de vista prático, a eficácia preventiva de cadastros públicos é contestável: nos EUA, onde existem há anos registries de sex offenders abertos, estudos não conclusivos apontam pouca redução na reincidência, ao passo que efeitos colaterais graves (vigilantismo, ostracismo que dificulta readaptação e possivelmente aumenta risco de reofensa) foram observados. O conservador prudente perguntaria: qual a consequência de longo prazo de expor milhares de ex-condenados ao descarte social? O remédio pode ser pior que a doença, fomentando uma subclasse de proscritos sem incentivo para retornar ao bom caminho.
Comparações Internacionais: Uso com Cautela
O debate sobre automatismos punitivos e cadastros de condenados não é exclusivo do Brasil. Há exemplos internacionais frequentemente citados por defensores e críticos dessas medidas:
- Estados Unidos (common law): Diversos estados possuem registros públicos de sex offenders, acessíveis a qualquer cidadão, contendo identidade e endereço de condenados por certos crimes sexuais. Todavia, isso se insere em um sistema jurídico muito distinto – por exemplo, lá há o plea bargain (acordos judiciais) e um histórico legal diverso. Além disso, a tradição de public shaming (exposição pública) tem raízes culturais próprias. Importar essa ideia sem ajustes ignora diferenças de contexto.
- Reino Unido: Mantém registros de criminosos sexuais, mas o acesso é mais controlado. Em geral, a comunidade não tem acesso irrestrito aos dados; o enfoque é facilitar verificações por empregadores em setores sensíveis (como escolas) e monitorar reincidentes por autoridades.
- Espanha (sistema continental): Adota medidas de proteção a vítimas de violência de gênero, porém com preocupação evidente em evitar injustiças contra inocentes. A Lei Orgânica 1/2004, que endureceu penas para violência doméstica, foi objeto de controle de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional espanhol (STC 59/2008). Embora a lei tenha sido mantida, o debate ressaltou a importância de preservar a igualdade e a presunção de inocência mesmo ao punir violência doméstica [22]. De fato, organismos espanhóis fizeram estudos indicando que a porcentagem de denúncias falsas nesse campo é muito baixa – em torno de 2% a 8%, segundo relatórios do Conselho Geral do Poder Judicial [23] – mas nem por isso inexistente. Ou seja, reconhece-se a gravidade do problema a ser combatido (violência contra mulheres), sem negar a necessidade de cautela e filtros para não punir inocentes.
Em síntese, exemplos externos servem de referência, mas não de justificativa automática. É incorreto transplantar institutos de um país para outro sem considerar as diferenças culturais, jurídicas e sociais. O conservadorismo exige prudência: olhar experiências estrangeiras pode iluminar o debate, mas copiar soluções ex abrupto tende a gerar efeitos indesejados. Cada sociedade precisa encontrar o ponto de equilíbrio entre proteção da comunidade e salvaguarda das garantias individuais.
Síntese da Análise Factual
Os projetos e apoios legislativos de Damares Alves convergem num ponto comum: a expansão do punitivismo estatal por meio de automatismos e medidas de efeito simbólico. Recapitulando:
- PL 499/2023: Propõe perda automática de cargo público e proibição de assunção de função por 5 anos para condenados por certos crimes sexuais (automatismo; seletividade de gênero na tutela legal).
- PL 8/2024: Proporciona exclusão prolongada do benefício da reabilitação (estigmatização pós-pena; descrença na reinserção).
- Lei 15.035/2024: Embora não de sua autoria, Damares apoiou e defendeu vigorosamente a versão mais draconiana do cadastro nacional de criminosos sexuais (exposição pública; pena extra-legem após cumprimento da sanção).
Todos esses movimentos destoam da tradição conservadora prudencial e aproximam-se de um moralismo legislativo performático. Em vez de “reformar para conservar”, como prega a máxima burkeana, as iniciativas damaresianas tendem a “punir para sinalizar virtude”, arriscando dilapidar pilares do Estado de Direito no processo.
Alienação Parental e a Antinomia Conservadora
A questão da Lei de Alienação Parental e da posição de Damares a respeito dela exemplifica, de forma particularmente dramática, a contradição entre o discurso de defesa da família e a prática legislativa de viés revolucionário. Vamos por partes:
O Marco Legal da Alienação Parental (Lei nº 12.318/2010)
A Lei nº 12.318/2010 representou um avanço jurídico ao reconhecer a alienação parental como forma de abuso psicológico contra crianças e adolescentes. Inspirada em experiências estrangeiras e na literatura psicológica, a norma buscou fornecer ao Judiciário instrumentos para coibir a manipulação de filhos contra um dos genitores em contextos de separação conflituosa. A lei define alienação parental e lista exemplos de atos: dificultar o contato da criança com o outro genitor, realizar campanha de desqualificação do pai ou mãe, apresentar falsa denúncia de abuso para obstar a convivência, omitir informações relevantes sobre a criança, entre outros (art. 2º). Prevê também medidas judiciais progressivas, desde advertência do alienador, passando por ampliar a convivência com o genitor alienado, multas, acompanhamento psicológico obrigatório, até a inversão da guarda em casos extremos e a suspensão da autoridade parental.
Apesar de seu propósito legítimo, críticas surgiram quanto ao uso distorcido da lei. Alguns setores – notadamente grupos de defesa de mulheres – denunciaram que pais acusados de agressão ou abuso de menores estariam invertendo a narrativa: alegando ser vítimas de alienação parental para desacreditar denúncias feitas pelas mães (as quais seriam, na verdade, protetoras). De fato, casos judiciais concretos mostram situações em que, após uma mãe denunciar abuso sexual do pai contra a criança e não se conseguir provar em juízo, o acusado contra-atacou acusando-a de alienação parental, resultando na perda da guarda pela mãe e guarda entregue justamente ao pai supostamente abusador. Essa instrumentalização indevida gerou um compreensível alarme em movimentos de proteção à criança e de direitos das mulheres. Coloca-se, então, o dilema prudencial: como corrigir os abusos sem jogar fora o instituto inteiro? A lei teria “defeitos de implementação” – perícias mal conduzidas, aplicação automática e acrítica por juízes despreparados, falta de escuta da criança etc. –, mas seu núcleo (coibir que filhos sejam usados como arma entre pais) ainda assim seria válido.
A Posição de Damares Alves
O ponto decisivo é que, em 2023, Damares Alves atuou formalmente pela revogação integral da Lei de Alienação Parental. Na condição de senadora, ela foi relatora de um projeto de lei (PL 1.372/2023, originado pelo senador Magno Malta) que propunha abolir completamente a Lei 12.318/2010. Damares apresentou parecer favorável à revogação total da lei, e esse relatório foi aprovado na Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado em agosto de 2023 [24]. Trata-se de um movimento de enorme gravidade do ponto de vista legislativo. Não se trata apenas de uma declaração infeliz ou de apoiar parcialmente críticas: houve um ato concreto no Parlamento, liderado por Damares na CDH, no sentido de extinguir o instituto da alienação parental do ordenamento jurídico. A justificativa apresentada por ela em seu parecer foi a de que a lei não gerou os efeitos esperados de proteger crianças, e ao contrário teria sido empregada de modo a criar problemas ainda mais graves do que os que pretendia resolver [24]. Segundo noticiado, Damares sustentou que a revogação tinha apoio da sociedade e até de diferentes correntes políticas, diante das denúncias de mau uso da lei [25]. Assim, não estamos diante de mera retórica ou associação política de Damares com certos grupos, mas de uma iniciativa legislativa concreta para aniquilar uma lei destinada à proteção das relações familiares.
A Resposta Conservadora Prudencial
À luz do conservadorismo clássico, a postura mais coerente não seria destruir a lei, mas corrigi-la incrementalmente. Vejamos por que:
- Burke advertia contra a tentação revolucionária de abolir instituições devido aos seus abusos eventuais. Ele mesmo, ao criticar excessos de instituições em seu tempo, preferia aconselhar reformas graduais a fim de preservar o bem maior. A solução conservadora seria reformar moderadamente a Lei de Alienação Parental – por exemplo, aprimorando os procedimentos periciais, estabelecendo salvaguardas contra decisões precipitadas, clarificando o texto legal para evitar ambiguidades –, em vez de simplesmente revogá-la por completo. Ab-rogar toda a lei por conta de distorções práticas equivale, na metáfora que Burke provavelmente usaria, a queimar a casa para se livrar dos ratos. A prudência recomendaria salvar a casa (isto é, o propósito protetivo da criança) exterminando os ratos (distorções) de maneira cirúrgica.
- Kirk defenderia preservar o “princípio permanente” subjacente à lei – a proteção da ordem familiar e do bem-estar da criança contra instrumentalização – enquanto se corrigem excessos. Ele nos lembraria do princípio da continuidade: instituições não devem ser descartadas abruptamente, pois servem a um fim permanente (no caso, resguardar vínculos familiares sadios). Se há elementos da lei causando injustiça, consertemo-los; mas extinguir toda a obra do legislador de 2010 é desprezar a sabedoria acumulada e começar do zero sem necessidade.
- Oakeshott veria na revogação uma típica ação de “política de fé”: imagina-se que varrer a lei do mapa produzirá automaticamente um bem (no caso, impedir falsas alegações de alienação parental usadas por abusadores). É um ato de fé em uma ruptura legal como solução limpa e instantânea. A política de ceticismo, ao contrário, aceitaria que qualquer solução é imperfeita e buscaria manejar prudentemente os instrumentos existentes. Em termos oakeshottianos, Damares preferiu o polo do fé (uma cruzada contra a lei imperfeita) em vez do polo do ceticismo (melhorar o que se tem, consciente de que perfeição é inalcançável) [8].
Logo, o relatório de Damares revela uma escolha com tintas revolucionárias: preferiu a terra arrasada a reformas incrementais. O resultado previsível de uma revogação total seria um vácuo jurídico, no qual filhos e genitores vítimas de alienação real ficariam sem qualquer proteção legal específica. A saída do conservador prudente seria encaminhar um projeto de lei alterando pontos da Lei 12.318/2010 que se mostraram problemáticos, equilibrando a proteção à criança contra abusos e contra falsas acusações.
Antinomia Conservadora em Ação
A contradição torna-se evidente:
- Discurso: Damares se apresenta como paladina da família, da infância e dos “bons costumes”.
- Prática: age para eliminar um instrumento legal criado justamente para proteger crianças e laços familiares de uma ameaça real (a alienação parental).
Ou seja, retórica de defesa da família combinada com prática de eliminação de instrumentos que a preservam. Do ponto de vista conceitual, é a inversão de prioridades: em nome de proteger mulheres e crianças de eventuais injustiças, abre-se espaço para injustiças contra homens e para a fragilização da própria instituição familiar (pois a alienação parental genuína deixaria de ter freios legais). O conservador autêntico perguntaria: ao revogar a lei, o que fica no lugar? Nada – a não ser a promessa de que o Judiciário “se vire” com os mecanismos gerais existentes, que antes de 2010 se mostraram insuficientes para coibir o problema, razão pela qual a lei foi criada. É como retirar uma peça defeituosa de uma máquina e deixar o espaço vazio, torcendo para que tudo funcione sem ela.
O Conservadorismo Autêntico como Alternativa
Vale ressaltar que criticar a posição de Damares não implica ignorar os problemas práticos da Lei de Alienação Parental. Conservadores autênticos poderiam e deveriam propor aperfeiçoamentos na lei, norteados pela prudência e pela proteção do bem comum. Algumas possibilidades de reforma conservadora do instituto:
- Reformas incrementais na lei: emendar a Lei 12.318 para explicitar que alegações de abuso sexual ou violência doméstica devem ser apuradas prioritariamente e que a mera não comprovação de uma denúncia não pode, por si só, fundamentar a conclusão de má-fé da acusação. Exigir que, para aplicar sanções da alienação parental em contexto de denúncia de abuso, haja laudos técnicos consistentes apontando indícios claros de manipulação dolosa.
- Aprimoramento técnico: fortalecer os aparatos periciais e profissionais multidisciplinares que assessoram juízes em disputas de custódia. Um conservador reconhece os limites do conhecimento individual do magistrado e valoriza corpos intermediários de expertise. Assim, seria sensato exigir pareceres de psicólogos, assistentes sociais e pediatras antes de mudanças drásticas de guarda, evitando decisões monocráticas e açodadas.
- Sanções contra falsas denúncias (garantismo bilateral): prever de forma mais clara consequências para quem acusa dolosamente o outro genitor de abuso que nunca ocorreu. O Código Penal já tipifica denunciação caluniosa, mas poucos casos chegam a essa responsabilização. Uma legislação reformada poderia trazer, por exemplo, a suspensão da autoridade parental de quem comprovadamente usou a máquina judiciária para destruir a relação da criança com o outro genitor por meio de fraude. Isso daria confiança de que a lei protege crianças também contra manipulações inescrupulosas do guardião.
- Preservar o interesse do menor como norte: inserir na lei princípios interpretativos que deixem claro que qualquer medida deve priorizar o bem-estar da criança acima de disputas dos pais. Parece óbvio, mas explicitar isso poderia coibir interpretações enviesadas.
Em suma, o conservadorismo autêntico reafirma a máxima de Burke: “reformar para conservar”. No caso, conservar o núcleo da proteção familiar contra qualquer ameaça – seja um genitor abusivo mantendo contato indevido, seja um genitor manipulador afastando injustamente o ex-cônjuge. Damares, ao escolher extinguir o mecanismo por completo, fugiu desse caminho prudencial.
Testes de Consistência Conservadora
Para avaliar se a atuação de Damares Alves pode ser considerada genuinamente conservadora, aplicam-se aqui quatro critérios clássicos extraídos da tradição de Burke, Kirk e Oakeshott: prudência, governo limitado, política de ceticismo e igualdade formal. Em cada teste, confrontamos os princípios com os projetos e ações da senadora.
Prudência (Edmund Burke)
Burke, em sua crítica à Revolução Francesa, defendia que reformas políticas devem ser realizadas com prudência, avaliando as consequências de longo prazo e respeitando instituições estabelecidas [1]. Sua máxima — “a prudência é a primeira das virtudes políticas” — é um antídoto contra soluções radicais baseadas em abstrações [1].
Aplicação ao caso de Damares:
- PL 499/2023 (perda automática de cargo público): Elimina a discricionariedade judicial e ignora a possibilidade de situações excepcionais. Falta prudência porque presume que uma fórmula abstrata (tornar a perda de cargo obrigatória) pode substituir a avaliação concreta de cada caso pelo juiz [26]. Não se consideram cenários como o de uma falsa acusação que leve a uma condenação em primeiro grau depois revertida em instância superior – nesse ínterim, o servidor já teria perdido o cargo “automaticamente”. A consequência de longo prazo pode ser minar a confiança na justiça e na carreira pública, efeitos que um conservador prudente ponderaria.
- PL 8/2024 (reabilitação após dez anos): Prologa a estigmatização sem comprovar eficácia. Falta prudência porque não há estudos que sustentem que triplicar ou quintuplicar o prazo de reabilitação reduza a reincidência ou melhore a segurança pública. Ao contrário, há risco de efeito inverso: dificultar a reinserção pode aumentar a marginalização e reincidência. O ganho imediato (sinalizar “dureza” contra abusadores) pode custar caro depois (ex-detentos sem oportunidades voltando ao crime).
- Revogação integral da Lei de Alienação Parental: Cria um vácuo jurídico, deixando famílias desprotegidas contra abusos emocionais. Falta prudência porque troca reforma incremental por demolição institucional. As consequências imprevistas podem ser sérias: disputas de guarda tornar-se-ão ainda mais litigiosas; pais realmente alienados perambulando de vara em vara sem um instrumento legal claro; sentimento de impunidade para quem manipular crianças.
Burke provavelmente advertiria que tais iniciativas não são conservadoras, mas jacobinas, pois acreditam que decretos legislativos draconianos podem “purificar” a sociedade de seus males. Ao ignorar a complexidade da natureza humana e das instituições, incorrem na temeridade que ele tanto condenou.
Governo Limitado (Russell Kirk)
Kirk identificava no governo limitado um princípio essencial do conservadorismo. O Estado deve ser forte o suficiente para manter a ordem, mas jamais onipotente a ponto de absorver funções que pertencem à sociedade civil, à família e às comunidades locais [5]. O conservador desconfia de concentrações de poder e de pretensões messiânicas do governo.
Aplicação:
- PL 499/2023: Amplia o poder estatal ao impor automaticamente a perda de cargos públicos, retirando do juiz (um poder descentralizado) a análise caso a caso e confiando cegamente na maquinaria central da lei. Além disso, estende a mão punitiva do Estado para regular quem pode ou não ingressar em cargos públicos até 5 anos após a pena, uma forma de inabilitação geral.
- PL 8/2024: Mantém o Estado como tutor da “ficha limpa” do indivíduo por uma década após o cumprimento da pena. Substitui parcialmente o papel da sociedade (que em teoria, ao longo de anos de convivência, filtraria quem é confiável) por um selo estatal de condenação perpétua. Em vez de reconhecer que, passado um tempo, o ex-condenado pode ser reavaliado pela comunidade e mercado de trabalho, o Estado retém para si, por muito mais tempo, o poder de dizer “você continua marcado”.
- Cadastro público de condenados (Lei 15.035/2024): Transforma o Estado em agente de exposição social. A função clássica estatal de punir já se esgotou com a pena; porém, com o cadastro, o Estado passa a atuar também como guardião moral permanente, alertando a população contra pessoas que já teriam saldado suas penas. Na versão que Damares defendeu (sem veto), o Estado coloca uma cicatriz legal sobre o indivíduo por tempo indeterminado.
Todas essas medidas expandem o alcance estatal para além da função legítima de proteger a ordem. Configuram um estatismo moral, no qual o governo decide vitaliciamente quem merece confiança e quem deve ser proscrito. Isso é incompatível com a lógica do governo limitado, pilar conservador. Para Kirk, um governo que se arroga a punição infinita ou automática incorre no mesmo erro dos revolucionários franceses: acredita que poder concentrado em nome do Bem não precisa de freios.
Política de Ceticismo (Michael Oakeshott)
Relembrando Oakeshott, a política de fé é aquela que crê poder moldar a sociedade à imagem de um ideal através do Estado; a política de ceticismo é aquela que, consciente dos limites humanos, mantém o poder sob vigilância e aceita a diversidade imperfeita da vida [8].
Os projetos de Damares refletem nitidamente a política de fé:
- PL 499/2023: Confia que um automatismo legal (perda de cargo obrigatória) resolverá o problema de criminosos sexuais no serviço público. É uma fé na engenharia jurídica para produzir “pureza” nas instituições, como se bastasse escrever na lei e o mal seria expurgado.
- PL 8/2024: Aposta que prolongar a exclusão social (via antecedentes) reduzirá reincidência, sem base empírica robusta. É uma crença quase moralista de que o Estado deve eternamente lembrar a sociedade de quem pecou, para assim evitar novos pecados.
- Revogação da Lei de Alienação Parental: Sugere que basta eliminar a lei “imperfeita” para eliminar as injustiças. Confia na ideia de recomeçar do zero, como se a ausência de legislação específica criasse automaticamente um cenário melhor. É uma fé iluminista de tábula rasa jurídica.
Em todos os casos, há fé excessiva na ação legiferante e pouca humildade cética quanto às consequências imprevisíveis. O homo legislator de Damares se assemelha ao rationalist criticado por Oakeshott: acredita em soluções diretas, de cima para baixo, e subestima a complexidade do tecido social. Para o conservador cético, isso é perigoso – as intenções podem ser ótimas, mais governos “de fé” tendem a derrubar colunas mestras da civilização na ânsia de extirpar um mal específico. Os projetos em questão praticamente não contemplam mecanismos de ajuste ou flexibilização; são peremptórios, apostando todas as fichas numa suposta eficácia redentora da lei.
Igualdade Formal
O artigo 5º da Constituição Federal assegura que “todos são iguais perante a lei”. Esse princípio ecoa a tradição conservadora de isonomia jurídica: a justiça deve julgar pessoas, não categorias abstratas, e evitar privilegiar ou perseguir grupos. Leis que criam distinções explícitas de tratamento quebram a ordem social natural e tendem a gerar ressentimento e reações adversas.
Aplicação:
- PL 499/2023: Protege explicitamente “mulheres” como vítimas dignas da consequência punitiva extra (perda automática do cargo), mas silencia sobre homens como potenciais vítimas de crimes sexuais. Essa seletividade cria, ainda que involuntariamente, uma hierarquia: se a vítima é mulher, o criminoso perde o cargo; se a vítima for um homem adulto (por exemplo, um caso de estupro homossexual ou assédio contra um homem), o efeito legal não se aplica. Trata-se de uma discriminação legal em razão do sexo da vítima. Burke criticava os “direitos do homem em abstrato” exatamente por temer que ideólogos passassem a legislar para categorias, e não para pessoas concretas; aqui vemos o espelho disso – deveres ou punições em abstrato, aplicados conforme a categoria da vítima, não conforme os méritos intrínsecos do caso [1].
- Cadastro público de condenados: Viola a igualdade formal porque perpetua o estigma sobre indivíduos que já cumpriram suas penas, colocando-os em posição desigual perante a sociedade. Cria uma subclasse de cidadãos marcados, que não gozarão do mesmo direito à privacidade e ao esquecimento que os demais. Se a ideia é “proteger vulneráveis”, por que só condenados por crimes sexuais e não por homicídios, sequestros, latrocínios? Começa-se com um grupo odiado (pedófilos) e abre-se um precedente para outros. A igualdade se esvai quando o legislador seleciona quem merece direitos fundamentais e quem não merece, ao sabor de contextos políticos.
Do ponto de vista conservador, a lei deve proteger todos os cidadãos e punir todos os criminosos de acordo com suas culpas individuais, sem criar distinções artificiais que reflitam agendas ideológicas do momento. Qualquer violação da igualdade perante a lei em nome de “causa justa” traz em si a semente da tirania, pois legitima que amanhã outros grupos sejam colocados fora do manto protetor da isonomia.
STF e o Contexto Brasileiro
A atuação legislativa de Damares não ocorre no vácuo; ela interage com um contexto jurídico-institucional fornecido, em parte, pelo Supremo Tribunal Federal. Nos anos recentes, o STF enviou sinais contraditórios em matéria de garantias penais:
- Em fevereiro de 2016, no julgamento do HC 126.292/SP, o STF mudou sua jurisprudência para admitir a execução da pena após condenação em segunda instância, relativizando o art. 5º, LVII, da CF/88 (presunção de inocência até trânsito em julgado) [12]. Essa guinada – liderada pelo ministro Teori Zavascki – foi saudada por setores “linha-dura” como necessária para acabar com a impunidade, mas foi criticada por juristas garantistas como rompimento da fidelidade constitucional.
- Em novembro de 2019, o STF revisitou a questão nas ADCs 43, 44 e 54 e, por estreita maioria (6×5), retornou à posição garantista: ninguém pode começar a cumprir pena antes do esgotamento de todos os recursos, salvo prisões cautelares específicas [14]. Restaurou-se, assim, a literalidade da Constituição, fortalecendo a presunção de inocência.
Entre 2016 e 2019, justamente, viveu-se um período de “punitivismo” judicial chancelado pela mais alta corte, o que encorajou diversas iniciativas legislativas endurecedoras. Muitas propostas de lei surgidas nesse intervalo (incluindo possivelmente as da própria Damares, eleita em 2018) vieram na esteira do sentimento social de tolerância zero com criminosos, simbolizado pela Lava Jato e pelas decisões do STF daquele momento. O problema é que, ao validar automatismos punitivos em 2016, o STF forneceu uma cobertura institucional para propostas similares. Se a Suprema Corte diz que se pode prender antes do trânsito em julgado, por que não se poderia também demitir um servidor antes do trânsito? Há uma coerência perversa nessa linha argumentativa. Quando o STF recuou em 2019, algumas ideias já tinham ganhado tração política.
Em suma, o STF mostrou-se oscilante, ora cedendo a pressões punitivistas, ora recuando. Essa ambivalência criou terreno fértil para políticos apostarem em pautas simbólicas de lei e ordem, mesmo que às custas de garantias básicas. Damares operou nesse cenário: suas propostas radicalizam tendências que em parte foram chanceladas no calor do momento por órgãos de cúpula.
Síntese: Falha nos Quatro Testes
- Prudência: as iniciativas de Damares mostram impaciência reformista e fé exagerada em decretos, ao invés de respeito gradualista pelas instituições e avaliação cautelosa de consequências.
- Governo limitado: ao contrário, expande o escopo de atuação e punição estatal em áreas sensíveis, fazendo o Estado intervir até onde o conservador preferiria que famílias e comunidades julgassem (como reputações após a pena).
- Política de ceticismo: substituída por uma política de fé na lei como panaceia moral.
- Igualdade formal: comprometida por seleções legais que atendem a clamores específicos (proteção de mulheres, exposição de pedófilos) mas ferem a universalidade do Direito e criam categorias especiais de cidadãos.
Em todos os critérios, a atuação de Damares desvia-se do conservadorismo clássico e aproxima-se de um populismo penal moralista. A embalagem conservadora retórica oculta um conteúdo que, na prática, sacrifica os próprios fundamentos que fizeram do conservadorismo uma força política distinta – a saber, a prudência, a moderação e o respeito às formas tradicionais de justiça.
Steelman – As Melhores Defesas de Damares e a Resposta Conservadora
Para evitar uma crítica unilateral, aplica-se aqui o método do steelman: reconstruir os melhores argumentos que poderiam ser usados em defesa das propostas de Damares Alves, para em seguida oferecer a resposta conservadora mais coerente a eles. São essencialmente os argumentos que os aliados de Damares usam em sua defesa, confrontados com a réplica da tradição conservadora prudencial.
Argumento 1 (Defesa): “Medidas excepcionais se justificam para crimes sexuais gravíssimos”
Defesa: Os crimes sexuais, especialmente contra crianças e pessoas vulneráveis, produzem danos irreparáveis. Chocam a consciência moral da sociedade. Por isso, medidas excepcionais — como perda automática de cargo e exclusão prolongada da reabilitação — seriam proporcionais à gravidade da ofensa. Um servidor público condenado por estupro de vulnerável, por exemplo, não merece benevolência alguma; ao contrário, deve servir de exemplo. Em síntese, é uma situação extraordinária que exige dureza extraordinária.
Resposta conservadora: O conservadorismo reconhece a gravidade do crime sexual e exige punição firme dos culpados. Entretanto, não admite a destruição de garantias universais em nome dessa repressão. A prudência ensina que abrir exceções no Estado de Direito pode minar todo o edifício de liberdades que protege inclusive os inocentes. Hoje a exceção é para crimes sexuais; amanhã, quem sabe, para crimes “contra a segurança nacional”, e assim por diante – o precedente é perigoso. Burke, ao comentar os julgamentos dos jacobinos na França, salientou que mesmo diante de crimes hediondos não se deve dispensar a justiça regular. Ele diria que fazer da exceção uma regra geral destrói a justiça, pois a justiça existe justamente para temperar nossos justos horrores com devidos processos [1]. O caminho não é relativizar a presunção de inocência ou a individualização da pena; é agilizar o processo penal sem violá-los. Que se prendam preventivamente abusadores perigosos (isso a lei já permite), que se priorizem julgamentos desses crimes, que se capacite melhor o Judiciário para lidar com eles. Mas não se rasgue garantias que valem para todos. Porque o conservador lembra: o direito penal de exceção hoje pode se voltar contra qualquer um amanhã, num abuso de poder. O “remédio heroico” pode envenenar o paciente (a sociedade) a longo prazo.
Argumento 2 (Defesa): “A Lei de Alienação Parental favorece abusadores; revogá-la foi um ato de coragem para proteger crianças”
Defesa: Há inúmeros relatos de mães e crianças injustiçadas pela Lei nº 12.318/2010. Pais violentos e molestadores têm usado essa lei para acusar mães protetoras de “alienação” e, pasme, conseguem inverter a guarda mesmo sendo os verdadeiros agressores. Diante disso, a lei se tornou tóxica. Revogá-la seria um ato de coragem, sim, para proteger mães e filhos. Em vez de manter uma lei que está sendo instrumentalizada pelo mal, melhor derrubá-la e pensar outras formas de proteção às crianças no futuro. Damares estaria ao lado dos vulneráveis ao querer revogar uma lei que, na prática, estaria acobertando criminosos astutos.
Resposta conservadora: O problema aqui não reside no conceito de alienação parental em si, mas no seu mau uso. O caminho conservador é a reforma prudente, não a demolição. Reconhecemos plenamente que houve abusos e erros judiciários envolvendo a lei. Entretanto, ao invés de jogar fora a criança com a água do banho, o conservador pergunta: por que não aprimorar os filtros? O direito raramente é perfeito de saída; corrige-se ao longo do tempo. Se maus maridos estão manipulando o dispositivo, vamos ajustar o dispositivo: tornar obrigatório ouvir a criança por profissionais sérios, punir severamente quem acusou falsamente outrem de abuso, treinar juízes para não caírem em argumentos falaciosos. Revogar a lei inteira seria privar todas as crianças e todos os genitores vítimas de um importante amparo, por causa de alguns casos aberrantes. Burke nos lembraria que mudanças bruscas por demandas emocionais geram efeitos colaterais terríveis; ele seguramente rotularia a revogação total como um gesto jacobino – destruir uma instituição sem ter algo testado e melhor para pôr no lugar. E se amanhã um pai verdadeiramente alienado, impedido de ver o filho há anos por lavagem cerebral da mãe, não tiver a quem recorrer? Teremos criado uma injustiça tão grande quanto as que tentamos resolver. Coragem conservadora é consertar um telhado com calma durante a tempestade, não demolir a casa inteira.
Argumento 3 (Defesa): “Falsas acusações são raríssimas; preocupar-se com elas é ecoar discurso de estuprador”
Defesa: Estudos de Espanha, EUA e Reino Unido mostram taxas baixíssimas de falsas acusações de estupro e abuso — em torno de 2% a 8% [27]. Ou seja, 92% ou mais das denúncias são verdadeiras. Portanto, legislar pensando na possibilidade de falsas acusações é punir a imensa maioria de vítimas reais por causa de uma minoria estatisticamente irrelevante de acusados inocentes. Ao enfatizar garantias para evitar punição de inocentes, acaba-se desprotegendo milhares de mulheres e crianças que sofrem violência de verdade. Esse tipo de argumento seria, segundo os críticos, capitulação a uma retórica machista que superdimensiona casos isolados de falsas denúncias e ignora a epidemia de abusos reais. Em suma: falsas acusações quase não existem; o foco deve ser nas vítimas verídicas.
Resposta conservadora: Mesmo que admitíssemos que somente 2% das acusações são falsas (ainda que alguns estudos mostrem percentuais um pouco maiores, dependendo do contexto) [28], isso não é motivo para negligenciar o tema. Dois por cento, num país de proporções continentais como o Brasil, representam possivelmente milhares de indivíduos. E aqui falamos de inocentes acusados injustamente – pais separados acusados indevidamente de molestar seus filhos, homens falsamente acusados de estupro cujo nome vira manchete. O conservador preza a justiça para cada pessoa. Não medimos direitos fundamentais em porcentagens utilitárias. Se há “só” 2% de inocentes correndo risco de linchamento moral ou legal, já é razão suficiente para calibrar cuidadosamente as leis. A civilização ocidental se orgulha justamente de proteger minorias vulneráveis contra as maiorias. Proteger uma minoria de falsamente acusados não significa desamparar a maioria de vítimas verdadeiras; é possível – e necessário – fazer ambos. A preocupação com salvaguardas processuais não invalida o amparo às vítimas legítimas, apenas busca a verdade real com rigor. Vale lembrar que sistemas de justiça que ignoraram a possibilidade de erro acabam cometendo atrocidades. O princípio conservador é que é preferível absolver um culpado do que condenar um inocente, máxima essa consagrada desde Blackstone [29]. Assim, uma legislação equilibrada deve punir severamente os culpados comprovados, mas ter mecanismos para filtrar acusações infundadas antes de destruir reputações e vidas inocentes. Em suma, reconhecer que falsas acusações existem e devem ser coibidas não é “discursinho de estuprador”, e sim zelar para que a justiça não se converta em injustiça. Russell Kirk escreveu sobre a ordem moral duradoura: sacrificar inocentes em nome de eficiência ou vingança coletiva rompe essa ordem e corrompe a sociedade tão seguramente quanto deixar crimes impunes [30]. O conservador busca ordem e justiça, o que inclui punir culpados e resguardar inocentes.
Impactos sobre Devido Processo, Falsas Acusações e Família
As propostas de Damares Alves têm implicações práticas profundas, que vão além do debate teórico conservador. Elas afetariam diretamente pilares do devido processo legal, o equilíbrio na apreciação de denúncias e a própria estrutura familiar. É importante delinear esses impactos:
Devido Processo Legal
O devido processo é uma garantia basilar que assegura a qualquer pessoa um julgamento justo, com direito a defesa, contraditório e decisão por autoridade competente e imparcial. As iniciativas legislativas em análise tensionam essa garantia:
- A perda de cargo automática (PL 499/2023) retira do condenado (ainda recorrível) a chance de permanecer no cargo durante o tramite dos recursos, tratando-o na prática como culpado definitivo antes da hora. Viola o princípio da não-culpabilidade enquanto houver recurso pendente [31]. Além disso, suprime a fase de individualização da pena quanto a esse efeito, já que o juiz não poderá mais decidir se, naquele caso concreto, a perda do cargo é medida justa ou não.
- A dilação da reabilitação (PL 8/2024) torna o processo de “segunda chance” meramente ilusório para condenados por certos crimes. Lembre-se: a reabilitação não é automática, ela depende de decisão judicial e avaliação da conduta pós-cumprimento da pena. Ao estabelecer um prazo de espera de uma década, o Estado está, na prática, presumindo que por dez anos aquela pessoa não merece recuperar plenamente seus direitos, por melhor que seja seu comportamento. É um espécie de condenação extra, sem julgamento, embutida na lei.
- O cadastro público de condenados (Lei 15.035/2024) – em sua versão original vetada – expunha dados de pessoas que sequer transitaram em julgado (bastaria condenação em 1ª instância) [32]. Ou seja, joga por terra o devido processo ao colocar sob punição social (porque a exposição pública é punitiva) quem ainda estava recorrendo. Mesmo com o veto do trecho dos “10 anos após a pena”, a lei ainda prevê exposição imediata pós-condenação em 1º grau, embora permita retirada se houver absolvição posterior [19]. É o mundo ao avesso: punir primeiro, verificar depois – exatamente o oposto do devido processo.
Essas medidas corroem a presunção de inocência e a individualização da pena, pilares do Estado de Direito. O conservador clássico não vê nessas garantias meros “tecnicismos de criminosos”, mas salvaguardas civilizatórias, frutos de séculos de desenvolvimento jurídico que protegem o cidadão comum contra o arbítrio do poder.
Falsas Acusações
Embora os dados confiáveis indiquem que falsas acusações de crimes sexuais sejam uma minoria dos casos [33], elas ocorrem e produzem danos devastadores quando acontecem. Em contextos de litígio familiar, o risco de acusações instrumentalizadas é real – tanto que a própria existência da Lei de Alienação Parental se deu, em parte, pela percepção desse fenômeno.
As propostas de Damares, em especial o PL 499/2023 e a defesa da revogação da Lei de Alienação Parental, aumentam o incentivo para a instrumentalização de acusações:
- Se a lei automaticamente remove o acusado de seu cargo e o impede de futuras funções, isso pode tornar ainda mais tentador usar uma denúncia falsa como arma para destruir carreiras (seja em disputas pessoais ou políticas). Imagine uma acusação forjada contra um prefeito ou um professor rival – mesmo que ele prove inocência anos depois, já terá perdido mandato ou emprego no interregno, sem chance de reparação plena.
- Ao revogar completamente a ferramenta legal que distinguia denúncias genuínas de abuso das táticas de alienação parental, perde-se um filtro institucional. Em vez de consertar o filtro, Damares propôs simplesmente removê-lo, o que paradoxalmente pode favorecer o alienador inteligente: sem lei específica, tudo volta a ser tratado no âmbito difuso das “disputas de guarda”, onde alegações de abuso podem prosperar sem o crivo objetivo que a lei dava (a lei exigia que, provada a falsidade da acusação de abuso, medidas fossem tomadas contra o alienador – sem ela, qual será a consequência? Provavelmente nenhuma, encorajando o “ganha quem acusa primeiro”).
Proteger a sociedade de criminosos sexuais é imperativo, mas proteger indivíduos inocentes de acusações falsas também é. Um sistema punitivo justo equilibra essas duas faces. Se pender demais para o lado de “acreditar em toda acusação sem reservas”, arrisca punir inocentes; se pender para o ceticismo absoluto, arrisca deixar culpados livres. O conservador busca o ponto de equilíbrio, usando a prudência.
Alienação Parental (no cenário pós-revogação)
Caso prospere a revogação da Lei 12.318/2010 (ainda pendente de votação final no Congresso até o fechamento deste texto), o ordenamento brasileiro ficará sem um marco legal específico para casos de alienação parental. Os juízes teriam de se valer de princípios gerais do Código Civil e do ECA para lidar com denúncias de manipulação psicológica de crianças. Isso significa, na prática:
- Desproteção de vítimas reais de alienação: Pais (ou mães) que forem impedidos injustamente de conviver com seus filhos terão mais dificuldade em demonstrar judicialmente o que está ocorrendo, já que não haverá na lei uma descrição do fenômeno nem procedimentos próprios (como perícia psicológica imediata, etc.). Muitos juízes podem menosprezar relatos de “minha ex está colocando meu filho contra mim” por acharem que é mero conflito parental típico, até que seja tarde demais. A lei vigente servia para alertar a autoridade de que aquilo é sério e que há ferramentas para agir.
- Insegurança jurídica: Sentenças já proferidas com base na Lei de Alienação Parental (e.g., inversões de guarda feitas nos últimos anos) poderiam ser revistas sob alegação de mudança de entendimento legal. Haveria discussões se a revogação atinge situações em curso ou apenas futuras. Enfim, um período de tumulto judicial até pacificar a ausência da lei.
- Crianças no fogo cruzado: Num vácuo normativo, cada caso dependerá inteiramente da sensibilidade do juiz. Juízes mais inclinados a acreditar em denúncias de abuso vão ignorar completamente a possibilidade de alienação e manter a criança com o acusador; juízes mais inclinados a presumir alienação podem, sem uma lei dizendo como proceder, errar a mão para o outro lado. Ou seja, aumenta a loteria judiciária. A lei, com todos os defeitos, era uma tentativa de criar parâmetros. Sem parâmetros, abre-se espaço para mais arbitrariedade.
Em resumo, longe de resolver os problemas, a abolição pura e simples da Lei de Alienação Parental pode fragilizar a família diante de conflitos. A criança – suposto centro de preocupação de todos – pode acabar mais exposta a manipulações, pois se elimina uma barreira legal que inibia certos comportamentos. O conservador que de fato se preocupa com a família enxerga isso e preferiria uma solução que protegesse melhor as relações familiares, não que as deixasse ao sabor das batalhas judiciais sem um norte claro.
A Família em Risco
Paradoxalmente, medidas defendidas por Damares – que se apresenta como campeã da família – acabam por colocar em risco a própria família enquanto instituição:
- Pais inocentes podem ser afastados dos filhos por acusações frágeis que se tornam quase irresistíveis em face de leis que presumem culpa (um pai processado criminalmente por abuso contra o filho perde o cargo público imediatamente pelo PL 499 – como ele sustentará a defesa e a família nesse meio tempo? Como fica seu vínculo com a criança durante anos até limpar o nome? Muito possivelmente, destruído).
- Crianças podem perder contato com um dos genitores injustamente, seja porque o genitor acusado não teve como se defender antes de ser socialmente banido, seja porque, com a revogação da lei de alienação parental, não há meios céleres de impedir um guardião manipulador.
- Indivíduos estigmatizados permanentemente (pelo cadastro público sem direito ao esquecimento) encontrarão grandes obstáculos em formar família, encontrar emprego digno, reconstruir laços sociais. Ao tratar pessoas permanentemente como párias, nega-se na prática a crença cristã na reabilitação e se abrem caminhos para submundos à margem da família e da comunidade.
As proposições de “tolerância zero” podem ainda gerar um efeito de desconfiança generalizada entre os sexos. Se qualquer relação conflituosa pode descambar em perda de função pública e infâmia pública para o homem acusado (ainda que inocente), isso não contribuiria para a harmonia familiar – ao contrário, semeia medo e ressentimento. Não é um cenário pró-família, mas um cenário de guerra dos sexos latente.
Em suma, longe de preservar a família, essas medidas produzem orfandade civil forçada: pais afastados, crianças instrumentalizadas, comunidades desconfiadas. Não se trata de retórica: são potenciais consequências concretas. Um conservador de verdade pondera essas externalidades e hesita em apoiar soluções que, parecendo duras contra criminosos, prejudiquem justo os valores que ele mais quer resguardar (a família, a estabilidade social, a confiança mútua).
Alternativas Conservadoras Autênticas
Se a preocupação central de Damares e seus apoiadores é a proteção de crianças, mulheres e da integridade da família – preocupação louvável e compartilhada pelos conservadores sinceros –, o caminho prudencial para alcançar esses fins é bem diverso do apresentado nos projetos de lei discutidos. Em vez de legislação simbólica e punitivista, elenca-se abaixo um conjunto de alternativas consistentes com o conservadorismo prudencial que poderiam trazer resultados efetivos sem violar garantias:
- Fortalecer investigações, não automatismos: O gargalo na punição de crimes sexuais está muito mais na investigação deficiente do que em brechas legais punitivas. Investir na criação de delegacias especializadas, capacitar policiais e peritos para coletar provas forenses robustas, acelerar exames de DNA e diligências técnicas, criar protocolos para depoimento sem dano de crianças (evitando tanto que inocentes sejam falsamente acusados quanto que culpados escapem por falta de prova). Um conservador prefere meios concretos de melhorar a eficácia do sistema existente a depender de “soluções mágicas” legais.
- Celeridade com garantias: Promover reformas processuais que agilizem o trâmite de crimes graves sem suprimir direitos. Por exemplo, aumentar o número de varas especializadas em violência sexual, permitir julgamento colegiado de primeiro grau para crimes hediondos (agiliza eliminando um grau de recurso se bem implementado), etc. Executar a pena mais rápido após o trânsito em julgado real, em vez de brigar para antecipar a condenação antes disso.
- Sanções proporcionais e motivadas: Em vez de perda automática de cargo público, poderia-se tornar mais clara no Código Penal a possibilidade de perda do cargo por decisão judicial fundamentada em casos de crimes contra vulneráveis, orientando o magistrado a geralmente aplicar em casos gravíssimos. Isso mantém a figura do juiz avaliando, mas dá um norte legislativo. Similarmente, no caso de reabilitação, poderia-se excepcionar que para crimes hediondos o juiz deve ser mais rigoroso ao conceder antes de certo tempo – porém, novamente, deixando margem para analisar a efetiva regeneração do indivíduo. O Estado deve punir, mas não se transformar em vingador inflexível.
- Reforma incremental da Lei de Alienação Parental: Em vez de revogá-la, aprovar um substitutivo que incorpore salvaguardas. Por exemplo: incluir no texto que a existência de denúncia prévia de abuso suspende o processo de alienação parental até conclusão daquela (evitando decisões precipitadas); determinar que nenhuma inversão de guarda ocorrerá sem laudo técnico multidisciplinar atestando tanto a ausência de abuso quanto a prática de alienação; prever recurso com efeito suspensivo obrigatório em caso de mudança de guarda baseada em alienação (para dupla instância rever, dada a gravidade). Assim se corrige sem destruir.
- Responsabilização de falsas acusações: Passar uma mensagem clara de que usar dolosamente o sistema de justiça como arma acarretará penalidades. Isso poderia ser via alteração no Código Penal para agravar a pena de denunciação caluniosa quando envolver falsa alegação de crime sexual ou de violência doméstica – hoje é de 2 a 8 anos, poderia subir. E/ou criar no Código Civil uma previsão de dano moral presumido em favor de quem foi falsamente acusado nesses contextos. Isso não desestimula vítimas reais (que não inventam histórias), mas serve de freio para eventuais oportunistas.
- Apoio às vítimas reais: Nada impede também aperfeiçoar a rede de apoio a vítimas de abusos: assistência psicológica, abrigos para crianças ou mulheres em perigo, etc. Um conservador entende o papel de instituições intermediárias – igrejas, associações comunitárias – nesse apoio. Políticas públicas que fortaleçam essas entidades têm melhor efeito do que meramente endurecer punições no papel.
Todas essas medidas se alinham ao espírito burkeano: buscar soluções concretas e moderadas que reformam para conservar. Conservam-se os princípios de justiça (não há atropelo do devido processo), conserva-se a família (evita-se vacância de proteção ou caça às bruxas injusta) e conservam-se as garantias individuais (não se criam categorias de párias legais). Ao mesmo tempo, promove-se a segurança e a ordem, com instrumentos realistas e testáveis. Em resumo, há caminhos para se combater crimes hediondos e proteger inocentes sem recorrer a mecanismos de exceção ou apelo meramente simbólico. Esses caminhos podem não render manchetes tão estrondosas, mas entregam resultados sólidos – e resultado, no final, é o que interessa para um administrador público responsável.
Conclusão: Conservadorismo Prudencial vs. Ativismo Moral
A análise conduzida demonstra que a atuação de Damares Alves contém uma antinomia em relação aos valores conservadores que ela própria alega defender. Recapitulando:
- Em vez de prudência, suas propostas exibem automatismos punitivos e iniciativas abruptas.
- Em vez de governo limitado, revelam um estatismo moral expansionista, que amplia a interferência estatal na vida e pós-vida dos indivíduos.
- Em vez de política de ceticismo, praticam uma política de fé na lei como redentora, ignorando efeitos colaterais e a imperfeição das soluções humanas.
- Em vez de igualdade formal, flertam com seletividade legal e distinções entre categorias de cidadãos.
Embora Damares se apresente como guardiã da família e da moral tradicional, suas propostas corroem o devido processo legal, ampliam riscos de acusações indevidas e fragilizam a proteção contra manipulações familiares (alienação parental). O conservadorismo que ela vocaliza conflita com o conteúdo efetivo de suas ações legislativas.
Esse paradoxo só se tornou viável em um contexto em que até o Supremo Tribunal Federal oscilou em temas penais, relativizando garantias em certos momentos [12]. Houve, nos últimos anos, uma atmosfera de punitivismo justificado pelo clamor popular que abriu margem para “experimentos” legais duros. No entanto, o STF voltou atrás em pontos-chave, indicando que o pêndulo punitivo extrapolou os limites constitucionais [14]. Espera-se que o mesmo senso de limite prevaleça no exame das propostas aqui discutidas.
O verdadeiro conservadorismo, contudo, exige outro caminho. Em lugar de cruzadas legislativas de inspiração moralista, o conservadorismo prudencial propõe:
- Prudência em vez de automatismo: avaliar caso a caso, preservar a figura do juiz e do devido processo, temer as consequências não intencionais das leis.
- Reforma incremental em vez de desmonte radical: aperfeiçoar o que existe, consertar o que não funciona, ao invés de jogar tudo fora e começar do nada.
- Governo limitado em vez de estatismo moral: reconhecer que nem todos os problemas sociais têm solução penal ou estatal; desconfiar de concentrações de poder e de qualquer medida que pareça permanentemente excluir pessoas da sociedade.
- Proteção universal em vez de privilégios seletivos: leis devem proteger todos os vulneráveis e punir todos os culpados conforme suas ações individuais, sem discriminações baseadas em classe, gênero ou outra categoria coletiva.
Em suma, a coerência conservadora não está em erguer bandeiras punitivas, mas em manter o equilíbrio entre ordem social e liberdade individual. Ao abandonar essa prudência e abraçar um ativismo moralizante, corre-se o risco de transformar a bandeira conservadora em máscara de um jacobinismo punitivo, que fere exatamente aquilo que promete proteger: a família, a justiça e os fundamentos de nossa ordem social.
Referências
[1] BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução em França. São Paulo: Edipro, 2018.
[2] KIRK, Russell. The Conservative Mind. 7. ed. Washington, D.C.: Regnery, 2001.
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[4] SCRUTON, Roger. The Meaning of Conservatism. 3. ed. London: Palgrave Macmillan, 2001.
[5] KIRK, Russell. The Politics of Prudence. Wilmington: ISI Books, 1993.
[6] KIRK, Russell. Roots of American Order. Wilmington: ISI Books, 2014.
[7] OAKESHOTT, Michael. Rationalism in Politics and Other Essays. London: Methuen, 1962.
[8] OAKESHOTT, Michael. The Politics of Faith and the Politics of Scepticism. New Haven: Yale University Press, 1996.
[9] BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado n. 499, de 2023. Disponível em: https://www25.senado.leg.br. Acesso em: 3 set. 2025.
[10] BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).
[11] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
[12] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 126.292/SP. Rel. Min. Teori Zavascki, j. 17 fev. 2016.
[13] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 2016.
[14] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADCs 43, 44 e 54. Rel. Min. Marco Aurélio; red. p/ acórdão Min. Dias Toffoli, j. 7 nov. 2019.
[15] SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
[16] BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado n. 8, de 2024. Disponível em: https://www25.senado.leg.br. Acesso em: 3 set. 2025.
[17] BRASIL. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal).
[18] PRESCOTT, J. J.; ROCKOFF, Jonah E. “Do Sex Offender Registration and Notification Laws Affect Criminal Behavior?”. Journal of Law & Economics, v. 54, n. 1, p. 161–206, 2011.
[19] BRASIL. Lei n. 15.035, de 4 de novembro de 2024. Institui cadastro nacional de condenados por crimes sexuais.
[20] BRASIL. Presidência da República. Mensagem de veto à Lei 15.035/2024. Brasília, 2024.
[21] METRÓPOLES. “Damares critica veto à publicidade do cadastro de condenados por crimes sexuais”. Brasília, 2024.
[22] ESPANHA. Tribunal Constitucional. STC 59/2008, de 14 de maio de 2008.
[23] CONSEJO GENERAL DEL PODER JUDICIAL. Informe sobre denuncias falsas en materia de violencia de género (2009–2016). Madrid: CGPJ, 2017.
[24] REPUBLICANOS. “Aprovado relatório de Damares que pede a revogação da Lei de Alienação Parental”. Brasília, 2023.
[25] JORNAL DE BRASÍLIA. “CDH aprova relatório pela revogação da Lei de Alienação Parental”. Brasília, 2023.
[26] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2017.
[27] CROWN PROSECUTION SERVICE. Charging Perverting the Course of Justice and Wasting Police Time in Cases Involving Allegedly False Rape and Domestic Violence Allegations. London: CPS, 2013.
[28] TROCMÉ, Nico; BALA, Nicholas. “False allegations of abuse and neglect when parents separate”. Child Abuse & Neglect, v. 29, n. 12, p. 1333–1345, 2005.
[29] BLACKSTONE, William. Commentaries on the Laws of England. Chicago: University of Chicago Press, 1979.
[30] KIRK, Russell. Enemies of the Permanent Things. Arlington House, 1969.
[31] ESTADOS UNIDOS. Supreme Court. Mathews v. Eldridge, 424 U.S. 319, 1976.
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