A construção de políticas públicas no Brasil, especialmente aquelas voltadas à segurança e à saúde mental, depende diretamente da qualidade e da abrangência dos dados oficiais. Nesse contexto, o Atlas da Violência, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, configura-se como uma das principais fontes de informação sobre mortes violentas no país. No entanto, a comparação entre as edições de 2020 e 2025 evidencia uma preocupante tendência de invisibilização dos homens como vítimas.
A edição de 2020 apresentava uma análise robusta sobre a vitimização masculina: 91,8% dos homicídios no Brasil tinham como vítimas os homens. O documento trazia ainda recortes detalhados por local do homicídio (69,4% dos homens assassinados na rua; apenas 7,9% em casa), meio utilizado, faixa etária, escolaridade e estado civil. Já o Atlas da Violência 2025, embora mencione que 94% das vítimas de homicídios juvenis (15 a 29 anos) são homens, omite dados relevantes: não há informação sobre local do crime, instrumento letal, nem recortes sociodemográficos detalhados como antes. A vitimização masculina aparece menos como objeto de análise e mais como dado de apoio a outras narrativas.
No que se refere ao suicídio, ambas as edições convergem no reconhecimento de que a maioria das mortes por causas autoinfligidas são de homens. A edição de 2020 destacava que muitos suicídios masculinos são erroneamente classificados como “mortes violentas com causa indeterminada”, em razão do uso de instrumentos como armas de fogo e objetos contundentes. A edição de 2025 aprofunda a análise sobre suicídios juvenis, indicando que a maioria das vítimas são homens, solteiros, de baixa escolaridade, entre 15 e 24 anos, com ênfase na população indígena. Ainda assim, nenhum dos documentos aborda de forma direta e sistemática a depressão masculina como fator subjacente, nem tampouco reconhece o silenciamento histórico sobre o sofrimento psíquico dos homens.
A maior diferença entre os dois relatórios se manifesta no tratamento da violência doméstica. Enquanto a edição de 2020 reconhecia que 7,9% dos homicídios de homens ocorriam no âmbito doméstico (em contraste com 38,9% entre mulheres), a edição de 2025 simplesmente omite os homens dessa discussão. Toda a análise é voltada à mulher como única vítima da violência intrafamiliar, perpetuando uma narrativa unidimensional que ignora as complexas dinâmicas relacionais, inclusive aquelas que vitimizam homens, especialmente em contextos de conflitos conjugais, alienação parental ou falsas denúncias.
O que se observa, portanto, é um deslocamento metodológico e político. A edição de 2020, embora não isenta de recortes ideológicos, apresentava uma maior abrangência analítica, permitindo compreender o fenômeno da violência em sua complexidade. A edição de 2025, em contrapartida, revela uma seleção narrativa que parece orientar-se mais por um viés ideológico do que por um compromisso com a neutralidade científica. A invisibilização masculina não é meramente uma ausência: é um gesto editorial ativo, que impacta diretamente a formulação de políticas públicas e o reconhecimento institucional de demandas urgentes.
Negar visibilidade às vítimas masculinas é negar-lhes também cidadania e proteção. Se o conceito de gênero serve para reconhecer desigualdades históricas, não pode ser seletivo. A perspectiva de gênero não deveria significar a exclusividade feminina do sofrimento, mas sim a capacidade de reconhecer que homens também morrem, sofrem, silenciam e são negligenciados pelas estruturas estatais.
Em tempos de discursos cada vez mais polarizados, é preciso resgatar o compromisso com a verdade empírica e com a pluralidade das vítimas. Invisibilizar homens é escolher ignorar uma parcela significativa da violência que assola o país. É tempo de repensar os paradigmas das pesquisas e exigir que os dados, e não as ideologias, orientem a ciência e a justiça social.
Importa destacar, por fim, que os dados oficialmente publicados estão sujeitos a subnotificações. No caso dos homens, a realidade pode ser ainda mais drástica, uma vez que a legislação brasileira obriga a notificação compulsória apenas de casos envolvendo violência contra mulheres, não havendo previsão legal equivalente para as violências sofridas por homens. Isso implica em invisibilidade estatística e institucional, ocultando parte significativa da violência que os afeta e impedindo a adoção de medidas eficazes de prevenção e proteção.